“Nada é realmente sério, eu acho que tudo é maravilhoso, sempre. Eu acredito neste mundo”, diz Areum, a personagem de Kim Min-hee em "O dia depois". Um filme sobre crença, com certeza, por mais que seja sempre um exagero levar as palavras das personagens de Hong Sang-soo tão ao pé da letra. Nada que não seja esquecido e superado por um balançar de cabeça, um gole de álcool e uma singela troca de ofensas. Raramente as pessoas carregam consigo as rusgas para fora da mesa do bar, assim como raramente as pessoas mudam no curso de uma mesma linha narrativa – Hong compreende que a mudança não pode ser exclusividade epifânica de uma personagem, mas deve atravessar toda a história e todos envolvidos, e por isso são tantos os recomeços, afinal não se cria uma nova percepção sem criar todo um mundo. Mas "O dia depois" não é um filme episódico em sua estrutura, sua ambiguidade se dá mais pelos vários flashbacks e pela reiteração dos mesmos espaços, como se vê na belíssima sequência no parque no início do filme. Um filme de montar, nada de novo no cinema do diretor sul-coreano. A confusão se generaliza também pelo enredo: a mulher de Bongwan descobre que este a está traindo, confunde a assistente (Areum) com a amante (por sua vez, ex-assistente) e a agride. Mais à noite, Bongwan pede desculpas à sua assistente, sua amante retorna e lhe pede emprego, o que leva Bongwan a demitir sua assistente – tudo no primeiro dia de trabalho. Aliás, o título do filme carrega algo de misterioso, pois a ação se passa toda ela em um único dia, com alguns flashbacks de meses antes e uma breve cena no final, que remete a um certo tempo de distância do ocorrido. O dia depois é justamente aquilo que escapa a Bongwan, sua incapacidade de lidar com as consequências e seu jogo covarde com as três mulheres que lhe circundam. É preciso salientar que este é um dos mais elegantes filmes do diretor. Os movimentos de zoom, que geralmente solavancam a imagem, quase com efeitos cômicos, aqui são suaves, singelos, e o preto e branco sutiliza a beleza da paisagem fria sul-coreana. Kim Min-hee, em plano digno de musa, admira os primeiros flocos de neve do inverno enquanto faz sua oração. "O dia depois" é religioso, trágico, cotidiano; a assistente pede ao chefe que este creia em alguma coisa, como ela, seja Deus, seja o mundo. Mas ele está irrecuperável, mal acredita nas próprias palavras que escreve em suas críticas literárias, se vê cada vez mais distante do real. E quando o dia depois, o mais real de todos, se abate sobre ele? É um filme de montar, mas sem recomeços. Quando Areum reaparece e Bongwan lhe faz as mesmas perguntas de seu primeiro encontro, temos um arroubo de esperança: um novo dia começa! Agora mais certo do que antes, Bongwan irá enfrentar sinceramente sua covardia, irá encontrar sua crença neste mundo. Mas o filme já tinha resolvido isso antes: a doce ilusão do espectador se rompe diante da realidade da personagem. Num plano que pouco pretende encerrar qualquer coisa, observamos Areum sair do escritório em meio à densa neve enquanto um entregador de comida chinesa estaciona sua motocicleta. Tudo é maravilhoso, sempre. Este texto foi originalmente publicado no Zinematógrafo #24. Sobre o Autor: Lennon Macedo é mestrando em Comunicação e jornalista formado pela Fabico. Ex-integrante do CineF, pesquisa cinema asiático e cinema brasileiro contemporâneo, tendo organizado mostras e cursos sobre o tema em Porto Alegre. Escreve também para o fanzine Zinematógrafo. |
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